A arte da cozinha ou como surgiram os doces de padaria

por Cozinha da Márcia

Quando mais leio livros antigos de receitas, mais eu fico encantada por aprender que para acontecer alguma mudança importante na cozinha de restaurantes hoje em dia, assim como ocorreram em alguns castelos e casa burguesas antigamente, é preciso um esforço enorme no sentido de se mudar completamente a maneira com que os seres humanos preparam aquilo que em primeira instancia serve para nos manter vivos – a comida. E, não é que com frequência esquecemos porque comemos?

Já tem algum tempo que foi publicada uma nova versão do primeiro livro de cozinha escrito em língua portuguesa, Arte da cozinha. A edição original é de 1680, mas essa revisão é de 1764. Me desculpo pelo preciosismo, porém ele explica muita coisa nesse caso, como o fato do livro ter receitas com chocolate, o que não seria muito natural na primeira edição. Por essa época o chocolate, original do Brasil e do México, já tinha fama internacional e era muito apreciado como bebida.

Assim , adaptar o português antigo de um livro de cozinha dos séculos passados é uma arte. A língua mudou junto com todas as rupturas muito duras que ocorreram com a alimentação, sobretudo com a passagem de uma vida rural e sazonal para uma vida com congeladores e sem estações. O que não mudou são as quantidades, apesar do sistema de medidas ter sido trocado diversas vezes de arratéis para libras e depois para quilos e, é claro, a lista de ingredientes também permaneceu.

E, ainda assim para se fazer algumas de suas receitas é preciso saber cozinhar, os livros antigos contam as sequencias que os ingredientes deveriam ser acrescentados aos caldeirões e assadeiras, mas não tem as quantidades bem definidas como se faz hoje. Serviam, no começo, para ajudar um jovem cozinheiro trabalhando sob as ordens de um batalhão de pessoas em uma cozinha de uma fazenda ou casa de gente rica na Europa.

Aqui o serviço era executado a princípio pelas índias aprisionadas e depois pelas escravas de origem africana, portanto o investimento em formação de pessoal especializado era inexistente, os patrões, nos dois primeiros séculos de colonização adequaram-se às comidas locais. A dieta indígena era muito bem balanceada, porém sem combinações mais complexas como a dos europeus mais ricos.

Europeu pobre, até o século XX, tinha a sua disposição repolhos, tubérculos e folhas que pegavam no mato. Carne de porco só mesmo os remediados comiam, agora um coelho, um passarinho, isso dava para caçar se o patrão não implicasse dizendo que era dele. Havia grãos semelhantes ao trigo – centeio, mileto, sorgo, que comiam em sopas. Sal quase não comiam, e o açúcar demorou para se democratizar. Assim, quem por aqui chegava até o início do século XIX, enriquecia muito a sua dieta, com um número grande de frutas com muita vitamina C, como os cajus, a mandioca, o milho e por nossa sorte, os africanos foram empreendedores e trouxeram uma série de alimentos da África para o Brasil.

Para ver uma receita fácil de cocada do começo do século XIX, clique

Quando se consegue um exemplar de um livro antigo como Arte da Cozinha, reeditado com todo o cuidado pela historiadora Paula Pinto e Silva, é uma delícia. Ao ler o texto das receitas nos transportamos para as grandes casas de dois séculos atrás com suas enormes cozinhas e fogos enormes para se assar, cozinhar e defumar carnes e embutidos. Graças ao trabalho de revisão do texto, que deixou a linguagem e as medidas tal como no século XVIII, podemos entender bem o método usado para preparar os assados, guisados e doces.

Em 1680, o ano da primeira edição, a lista de pratos doces e salgados não era muito diferente do que se come hoje, pelo menos na teoria – na prática tudo é bem diferente. Ler as receitas é como olhar a vitrine de uma padaria com os doces fazem parte de nossas vidas. E não apenas a lista básica de receitas, o livro tem bolos, cavacas, melindres, bolo de nozes, biscoito de chocolate – incluído provavelmente na edição de 1764 ou logo antes, balas, balas de ovos, sonhos e filós, arroz doce, pasteizinhos e sorvetes.

O livro é português, e mostra ainda como apesar de ser o reino pobre da Europa, comparado com a Inglaterra e a França, por exemplo, a mesa dos grandes era bem boa. Algumas receitas ainda remontam à Idade Média com manjares preparados com leites de nozes e de amêndoas, para fazer em casa é só triturar com água no liquidificador e espremer em um pano – os dois são bons para se usar em molhos para peixes ou como base de sorvete. Aliás, esse é um ingrediente que poderíamos utilizar com mais frequência.

Veja como era feito um biscoito de fubá no século XVIII

Baseado nas receitas dos livros, não fica muito claro como eram as refeições da aristocracia portuguesa. Talvez porque o livro não fosse escrito para os seus empregados e sim para ser usado por grupos menos abastados, talvez porque quem precisasse de um livro, já faria parte do quadro de funcionários, talvez o livro fosse para chefes e administradores, talvez pouca gente soubesse ler naquela época, talvez…

O seu forte é a pastelaria e uma lista de sugestões para banquetes, com muitos pratos e muitos serviços muito interessantes, mas o bom mesmo são as receitas. No final, a chef Flávia Quaresma adaptou 31 receitas aos tempos atuais. De minha parte preparei um bolo de chocolate, como poderia ter sido feito no final do século XVIII. Um bolo modesto em tamanho, mas cheio das sutilezas e assado no forno bem baixo.

Feliz Páscoa da Cozinha da Marcia. Foto: Marcia ZoladzFrango ao molho branco.Foto: Marcia ZoladzMassa de talharim feita em casa. Foto: Marcia ZoladzMassa de talharim feita em casa.Receitas de picles. Fotos: Marcia Zoladz

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