Em 1977 eu fui ao Recife para o Carnaval. Minha mãe tinha um casal de amigos encantadores, o Aloísio (1927 – 1982) e a Solange Magalhães (1939) que tinham uma casa lá no alto em Olinda. Ela, uma pintora extraordinária, e ele era um artista plástico, designer gráfico, e mais tarde criador, em Brasília, do Projeto Pró-Memória. Aloísio percebia a necessidade de se começar a organizar a cultura material brasileira em instituições. Talvez para melhor entendermos a nossa identidade. O projeto começou em 1977, e foi absorvido pelo Instituto do Patrimônio Cultural Brasileiro em 1990.
Mas foi a partir dessa época que os artesãos e as suas práticas começaram a ganhar relevância de modo sistemático no universo cultural brasileiro como sinal de sofisticação. Foi também quando artesão e artesanato passaram a ser entendidos como arte, como parte de um processo criativo original, e as pessoas que executam esses objetos deixaram de ser artesãos e começaram a se ver como artistas.
Ao se documentar o trabalho de cada um, junto com as suas técnicas de trabalho conseguiu-se observar a origem cultural de cada um desses objetos. Alguns são utilitários como a farinheira da foto. cumbucas, e assadeiras nem sempre são vistas até hoje como objetos de arte e ganharam uma nova categoria – são objetos de bom desenho – a palavra usada é design.
Agora aquelas esculturas em formato pequeno que retratam o cotidiano de uma determinada região onde os seus autores vivem ganharam e permanecem como nome de arte, e são lindas sobretudo quando colocadas juntas para retratar uma festa ou a vida de uma cidade.
O projeto inicial de Aloísio também iria incluir o relato dos artesãos. Mas, eu não sei dizer até onde prosseguiu. Assim, de simples peças compradas nas feiras, esses objetos passaram a ser considerados objetos de arte transmissores de conhecimento. E permanecem até hoje como esse valor enorme, pena que raramente paramos para prestar atenção no que eles nos ensinam.
Passados cinquenta anos, o trabalho dessas pessoas cresceu em reconhecimento, e uma visita ao Museu do Pontal na cidade do Rio de Janeiro, com seu sucesso enorme e merecido, só ajuda a nos mostrar quem somos.
Para saber um pouco mais sobre o Aloísio Magalhães
O caso da farinheira
Mas voltando a Olinda em 1977. Em um país como nosso, a farinha de mandioca é um alimento fundamental, diria mais é um alimento raíz, de origem índigena, rapidamente absorvido pelos portugueses e africanos. Hoje, o quibe árabe dá uma passada rápida na farinha de mesa para ficar mais crocante, a pescadinha não vai para a frigideira sem ela, e os rissoles, hoje modernizados e chamados de bolinhos de angu ou de feijoada, ficam mais dourados por causa dela.
Aloísio Magalhães nos levou, ou nos mandou a vários locais para talvez deixarmos de ser cariocas da gema para crescermos em nossa visão do que é ou poderia ser design brasileiro – naquele verão – a cada fim de tarde com uma batida com nomes de frutas como seriguela, pitomba, caju, e jabuticaba que bebíamos como se fosse suco, ao mesmo tempo que Solange nos ensinava os truques para podermos repetir a receita de volta ao Rio, ele nos contava uma história.
E a da farinheira da foto é uma delas. Cerâmica de barro claro, com formas lisas e sem ornamentos, com uma tampinha de encaixe suave feitas pelas mãos de Amaro, que morava em Tracunhaém. Cerâmica brasileira que absorveu conhecimento com os povos originais, com os africanos e com os portugueses, todos os três povos grandes cerâmistas. Tracunhaém produz esse tipo de cerâmica até hoje, porém não mais artesanal.
O verbete sobre Amaro de Tracunhaem