A Folha de S. Paulo de 23/11/2023, tem uma notícia excelente: a editora Cosac, a antiga Cosac e Naify, volta à ativa com seus livros de altíssima qualidade editorial. O texto também divulga o próximo livro a ser publicado – será sobre as joias chamadas “de escravas ou joias de crioulas”, que ultimamente chamam de joias baianas. E de acordo com a reportagem, o livro também utiliza essa nomenclatura. Nas palavras do próprio editor: “…o tomo é dedicado à sua joalheria, com imagens e contexto histórico das “joias de crioula”, termo usado historicamente para se referir aos acessórios usados por escravas, uma expressão que Cosac rejeita em prol da expressão joias baianas”.
Aproveito a ocasião para falar de um tema que vem me incomodando faz tempo: que é como se para falar de nossa herança africana devessemos evitar a origem da Diáspora Africana tanto aqui como em outros países. A história dessas joias e das pessoas que as utilizaram me parece extremamente importante para não apagarmos quem foram as suas donas. Essas mulheres usavam essas joias porque eram ou escravas ou alforriadas. E as correntes, colares, e pulseiras tem um estilo muito próprio. Portanto, trocar o nome para joias baianas me parece um esquecimento da condição dos africanos como seres humanos escravizados.
As joias são bonitas? São. Foram fabricadas na Bahia? Sim. E daí?
Esse conjunto de joias só existiu porque eram fabricadas para serem usadas por pessoas escravizadas. As joias usadas pelas portuguesas e portugueses e brasileiras e brasileiros – aqueles nascidos aqui e de origem europeia eram diferentes, além de fabricadas na Europa, tanto o ouro quanto as pedras eram trabalhados de outra maneira, mesmo que a matéria prima viesse do Brasil.
Além disso, as joias usadas por escravas e ex-escravas eram uma forma de acumular riquezas, uma vez que escravos não podiam ter propriedades. Mas, enfeites no corpo eram mais difíceis de serem desapropriados.
Os problemas da lei
Os direitos das populações negras (pretos e pardos de acordo com a nomenclatura do IBGE) foram negados desde que chegaram aqui. Imagine que apenas em 1871, promulgou-se uma lei – a Lei do Ventre Livre, que além de declarar os filhos de escravos libertos reconhecia alguns direitos civis dos escravos e dos alforriados.
A lei tinha um número grande de pegadinhas: os proprietários das escravas eram obrigados a sustentar os recém-nascidos até que tivessem oito anos. Nesse momento, o seu dono poderia entregá-lo para um orfanato público, e em troca recebia uma indenização. Havia ainda uma segunda opção – essas crianças poderiam ficar trabalhando como escravas até a sua maioridade. Para serem alforriados precisavam ainda pagar uma quantia.
Imagine o sofrimento de mulheres e crianças ao terem que conviver com a possibilidade de um afastamento precoce ou a perspectiva de uma escravidão continuada. E ao mesmo tempo essas mulheres criaram de modo excepcional a comida que apreciamos hoje em dia. Introduziram os seus métodos ancestrais de lidar com os ingredientes da terra, e ainda absorveram o jeito português de refogar alimentos. Temos também que lembrar que cozinheiras e cozinheiros – escravos domésticos, modificaram os ingredientes dos povos originários. E é com essa comida que alimentamos nossas crianças. Esquecer que foram escravas é apagar a sua força.
Legendas das imagens
Tapioca com queijo coalho é um bom exemplo do uso do amido da mandioca, criado pelos povos originários, para fazer a tapioca, junto com o queijo de coalho nordestino, típico dos colonizadores. O ingrediente local foi ingeniosidade rapidamente incorporada pelas mulheres que cuidaram durante três séculos da cozinha das casas brasileiras.
Penca com balangandãs usadas pelas baianas como parte de seu traje tradicional. A roupa foi criada por elas para diferenciá-las das demais vendedoras ambulantes, tinham cores claras e eram engomadas como um sinal de higiene e qualidade no preparo dos alimentos, o que era um item importante em cidades como o Rio de Janeiro e Salvador, que ainda no século XX tinham problemas de salubridade.
Quiabo refogadinho – a planta veio da África, e hoje não ocorre a ninguém que o quiabo não é brasileiro.